Disputa armada entre traficantes iniciada no dia 17 tem sua origem em tensões que existem há anos
Com quase 70 mil moradores segundo o Censo de 2010 do IBGE, a Rocinha é a maior comunidade da cidade do Rio de Janeiro. Localizada no bairro de São Conrado, na valorizada zona sul da cidade, com Leblon e Gávea de um lado e Barra da Tijuca de outro, a área é frequentemente apontada como um importante ponto do tráfico de drogas.
Desde o dia 17 de setembro de 2017, traficantes têm travado uma disputa pelo controle do local. Os ataques são coordenados por chefes da facção Amigos dos Amigos e partem de pontos relativamente distantes da Rocinha, a comunidade São Carlos, no centro, e a Vila Vintém, na zona norte. O governo intensificou sua intervenção com polícia e Forças Armadas a partir do dia 22. Até o dia 26 de setembro, sete pessoas morreram, e 11 foram presas. Escolas têm mantido as portas fechadas, e milhares de crianças estão há dias sem aulas.
A atual crise na Rocinha envolve tanto disputas pessoais quanto entre facções. Ela tem raízes em 2011, ano em que o então chefe do tráfico local, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, foi preso. Isso abriu o caminho para que seu ex-braço direito e ex-guarda costas, Rogério Avelino da Silva, ou Rogério 157, assumisse o controle. Nem teria ficado insatisfeito com a sucessão e, mesmo na cadeia, continuou buscando exercer influência sobre o tráfico local. Segundo informações do jornal O Globo, a Polícia Federal descobriu em 2014 que o traficante preso emitiu uma ordem para que Rogério 157 fosse expulso da comunidade, o que não chegou a ocorrer. A tensão continuou nos anos seguintes. Em um caso de 2015, traficantes ligados a Nem teriam se desentendido com o grupo de Rogério, o que levou a uma troca de tiros na qual quatro dos aliados de Nem foram baleados e encaminhados a um hospital. Uma das formas pelas quais Nem dava ordens era transmitindo-as por meio de sua quarta esposa, Danúbia de Souza Rangel, que o visitava regularmente. Rangel contratou guarda-costas próprios e, por sua autoridade, ficou conhecida como a “Xerife da Rocinha”. Em entrevista concedida ao site da BBC, o jornalista britânico Misha Glenny, especializado em crime organizado e autor de uma biografia sobre Nem, afirmou que Rangel pode ter se tornado uma das forças a disputarem poder no local. “Havia divisões internas, com a Danúbia aparentemente querendo ter mais protagonismo, e a comunidade se dividindo sobretudo entre ela e o Rogério [157]”.
Rogério vinha perdendo recentemente popularidade por impor taxas a serviços como mototáxis e distribuição de gás. Apenas a taxa paga por mototaxistas renderia R$ 100 mil por mês, segundo informações do portal UOL. Em entrevista ao site, o delegado Carlos Eduardo Thome, da DRE (Delegacia de Repressão a Entorpecentes), afirmou: “Os dados indicam que o Nem estava muito insatisfeito com a forma como o Rogério vinha conduzindo o tráfico na região efetuando cobranças com moradores e com os mototaxistas. Se o mototáxi não pagasse de forma devida, ele mandava quebrar as motos das pessoas. Ele extorquia efetivamente as pessoas que trabalhavam na comunidade”.
A disputa também envolve diferenças entre facções criminosas assim como brigas internas da ADA (Amigos dos Amigos), da qual tanto Nem quanto Rogério 157 faziam parte inicialmente. Segundo o jornal Extra, Rogério vinha flertando com a ideia de deixar a ADA, e teria tentado em 2014 se aproximar de um outro grupo, chamado Terceiro Comando Puro, mas não foi aceito. Em 2016, o PCC (Primeiro Comando da Capital), uma poderosa facção baseada em São Paulo, rompeu sua aliança histórica com o CV (Comando Vermelho), baseado no Rio. Nesse contexto, a Amigos dos Amigos, que é inimiga do CV, se aliou ao PCC no final do mesmo ano. Nem e outros líderes da ADA teriam apoiado a aliança, mas não foram unânimes. Rogério 157 teria tentado então se aproximar de um dos chefes da ADA contrários à aliança com o PCC. O intuito seria manter o controle da Rocinha mesmo sem o apoio de Nem.
No dia 13 de agosto, três homens de confiança de Nem foram encontrados mortos em um carro na Estrada da Gávea, que cruza a Rocinha, no que pode ter sido um esforço de Rogério 157 de se proteger de planos para retirá-lo do poder e um ponto importante da escalada do conflito. No final de agosto, Nem teria enviado um ultimato de dentro do presídio federal onde está preso, em Rondônia, para que Rogério 157 deixasse a Rocinha, no que não foi atendido. No dia 11 de setembro, aliados de Nem teriam sido expulsos da comunidade por Rogério. Parte da cúpula da facção criminosa Amigos dos Amigos teria decidido então organizar uma ação para tomar definitivamente o comércio de drogas no local. Em entrevista à BBC Brasil, o biógrafo de Nem, Glenny, faz a ressalva de que é possível que esse movimento não tenha sido comandado diretamente pelo traficante.
A invasão ocorreu no dia 17 de setembro, e contou com cerca de 60 pessoas que atuam nas comunidades São Carlos, no Centro do Rio, e Vila Vintém, na Zona Oeste. Ambas são dominadas pela Amigos dos Amigos. Apenas no primeiro dia do conflito três pessoas foram mortas e outras três ficaram feridas. Segundo informações do jornal Extra, Rogério 157 se aproximou recentemente do Comando Vermelho. Por isso, 200 traficantes de seu grupo que haviam se refugiado na Floresta da Tijuca durante a invasão teriam partido em seguida para seis comunidades dominadas pelo CV. A Polícia Federal confirmou que Rogério 157 rompeu com a ADA (Amigos dos Amigos). Não está claro, no entanto, se ele efetivamente se integrou ao CV.
Em entrevista à Rede Globo, o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB), afirmou que reagiu inicialmente à invasão do dia 17 determinando que nem polícia nem Forças Armadas – que atuam emergencialmente no estado desde agosto – interviessem. O objetivo teria sido tanto evitar a morte de civis quanto problemas maiores enquanto o festival Rock In Rio ocorria. “Eu mesmo fui consultado de madrugada pelo Wolney [Dias, comandante da PM] e o [Roberto] Sá [secretário de Segurança] e pedi para ter muita cautela. Conheço muito a Rocinha. O dia que tem mais gente na rua é no domingo. Se a gente reage, seria uma guerra onde morreriam muitos inocentes. Tem que ver o momento de entrar. E será que numa volta do Rock in Rio era hora de entrar e ir para o confronto ali?”
A atuação do estado sobre o conflito se intensificou a partir da sexta-feira (22), quando a Polícia Militar passou a cumprir uma série de mandados de prisão coletiva contra os grupos criminosos. No sábado, nove homens foram presos e ao menos 18 fuzis, apreendidos. Três suspeitos foram mortos, e um adolescente ficou ferido. No mesmo dia, o ministro da Defesa Raul Jungmann anunciou o envio de 950 membros das Forças Armadas para auxiliar a polícia em ações como controle do tráfego aéreo e do trânsito nas ruas do entorno da Rocinha, além de um cerco para impedir a fuga de criminosos. Mais três batalhões do Exército, com quase 3.000 homens no total podem ser direcionados ao local, caso a situação piore.
Apesar do cerco das Forças Armadas, alguns dos alvos da polícia fugiram pela Floresta da Tijuca, uma área verde de quase 4.000 hectares localizada entre as zonas Sul e norte da Cidade, o que espalhou o problema e fez com que o Bope (Batalhão de Operações Especiais) realizasse operações em outras áreas, como no Morro do Turano, na Zona Norte, a quase 40 minutos de carro da Rocinha.
A atuação do tráfico e a disputa entre facções ocorre apesar de o governo ter implementado no local uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) em 2012. Segundo informações do Extra, para lidar com a presença constante dos policiais o grupo de Rogério 157 tinha instalado câmeras em caixas de plástico pretas em diversos locais da Rocinha, o que lhes permitia monitorar sua atividade e limitava o controle efetivo da polícia. Idealmente, as UPPs implementam o modelo de polícia comunitária, que cria vínculos amigáveis com os moradores.
Assim como ocorreu em diversas outras áreas do Rio, no entanto, a relação entre os policiais e os moradores da Rocinha rapidamente se desgastou, o que prejudicou a atuação da UPP, segundo a avaliação de Ignacio Cano, membro do Laboratório de Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Em um caso notório, o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza foi detido por policiais na Rocinha e desapareceu enquanto era conduzido para a UPP local, em julho de 2013. O evento se tornou o foco de protestos naquele ano e símbolo de abusos policiais. Em novembro, 70 policiais da UPP local foram substituídos em uma tentativa de melhorar a imagem da unidade.
Os problemas da polícia são agravados pela crise financeira do estado, que tem um deficit fiscal de R$ 21 bilhões. A bonificação de policiais que atingiam metas foi abandonada, ao mesmo tempo que o governo deixou de preencher vagas abertas. Isso reduziu em 3.000 a quantidade de profissionais em menos de cinco anos, segundo o especialista. A polícia também deixou de pagar para que policiais trabalhassem a mais em suas horas vagas, o que intensifica a falta de pessoal. Para agravar o quadro, em agosto de 2017, UPPs como a que atua na Rocinha tiveram 30% de seu efetivo cortado. Ao mesmo tempo em que tem gerado o enfraquecimento do poder do estado, a desaceleração econômica faz com que mais pessoas busquem renda dentro do mercado legal e ilegal, o que impulsiona disputas por território, como a que ocorre na Rocinha. O estado tem sofrido com aumento de roubos e assassinatos, incluindo de policiais.
No final de julho de 2017, o presidente Michel Temer assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem autorizando a atuação de Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro. Isso significa que agentes do Exército, Marinha e Aeronáutica estão exercendo, atualmente, poder de polícia no estado. O decreto estabelece que os militares podem permanecer nas ruas do Rio de Janeiro até 31 de dezembro. Mas, segundo o presidente, após esse prazo a operação deve ser ampliada para até o final de 2018. No total, foram convocados 8.500 membros das Forças Armadas, além de 620 da Força Nacional e 1.120 da Polícia Rodoviária Federal, para atuar no estado, com ênfase na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Parte desse efetivo tem sido empregada para ajudar a abafar o conflito entre traficantes na Rocinha.
Todo esse movimento, que deve custar R$ 700 milhões apenas até o fim de 2017, serve para aumentar a sensação de segurança e reforçar a imagem de que o governo está agindo, mas não resolve efetivamente a questão da violência na cidade. A longo prazo e de forma geral a presença do Exército não resolve os problemas. Todos os governos, Fernando Henrique, Lula, Dilma, acionaram o Exército em algum momento. É um recurso que o governo usa para ganhar legitimidade e desviar a atenção dos outros problemas. A ação ocorre em um momento em que o governador Luiz Fernando Pezão é investigado pela polícia e é alvo de um processo na Justiça Eleitoral que pode custar seu mandato. Em paralelo, o próprio governo federal de Michel Temer tem índices baixos de popularidade, com aprovação de apenas 5% e é denunciado criminalmente pelo Ministério Público Federal pela segunda vez.
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