A definição de “casamento infantil” é formulada por pesquisadores e ativistas da área dos direitos de crianças e adolescentes a partir do parâmetro internacional fornecido pela Convenção dos Direitos da Criança da ONU (1989), que define como criança a pessoa com menos de 18 anos.
Entende-se por “casamento infantil” qualquer união conjugal formal ou informal em que ao menos um dos cônjuges tenha menos de dezoito anos. Mas além desse conceito fixado pelo critério etário, a noção de “casamento infantil” contém outras características.
É mais frequente em regiões de alta vulnerabilidade socioeconômica, e prevalecem as uniões entre meninas e homens mais velhos, a denotar a assimetria de gênero e geracional formada pela sobreposição de relações de poder, que estabelecem relacionamentos potencialmente desiguais e violadores de direitos dessas meninas.
A legislação brasileira não contempla de forma organizada os direitos sexuais e reprodutivos, em especial quando se trata do público adolescente. Estabelecem-se limites etários para o início da vida sexual – para o Direito Penal, é somente a partir dos catorze anos que se passa a considerar válido o consentimento para a prática de quaisquer atos sexuais – e para o casamento, permitido a partir dos dezesseis anos (tanto para as meninas quanto para os meninos), desde que com o consentimento dos pais ou responsáveis (ou com autorização do Juiz da Infância e Juventude à falta destes), sendo que a lei autoriza antecipar a idade núbil para permitir o casamento em qualquer idade se houver gravidez.
O pretexto da lei é proteger os adolescentes, a partir da compreensão infantilizante e equivocada de que estes não estão aptos a exercer de forma alguma sua sexualidade. Criminaliza-se a prática de atos sexuais com pessoas com menos de 14 anos – e para a lei penal tanto faz ser um homem de 40 anos mantendo relações sexuais com uma menina de 13 anos explorada sexualmente, ou se é um casal de adolescentes com idades entre 12 e 14 anos iniciando juntos sua vida sexual.
Para o Código Penal, ambas as situações estão sujeitas à lei penal/infracional. Aliás, vale lembrar que foi somente a partir de 2009 que o Código Penal passou a considerar crime manter relações sexuais com pessoas de idade entre 14 e 18 anos em situação de exploração sexual. E, ao mesmo tempo, a legislação permite o casamento em qualquer idade se a menina estiver grávida, pois não há uma idade mínima legal para gerar filhos.
Esses são os aspectos jurídico-legais brasileiros a respeito da idade mínima para praticar atos sexuais, casar-se e ter filhos, e esse modelo legal nos traz indicações importantes sobre a vigência de um determinado modelo de moral sexual que impacta a realidade dos casamentos infantis no Brasil.
O universo dessas meninas é, frequentemente, de muito poucas escolhas em termos de aspirações de vida relacionadas a estudo e trabalho, combinada com um controle da sexualidade adolescente somente aceita se dentro de um casamento, que passa a ser visto como um caminho seguro para “uma menina direita”, tanto em relação à sua subsistência quanto à possibilidade de almejar aquilo que ela imagina ser a vida de uma “mulher adulta” longe do jugo dos pais.
Ainda neste século XXI recaem sobre as mulheres julgamentos morais sobre suas escolhas sexuais diferentes daqueles que recaem sobre homens. Isto implica uma assimetria de poder neste campo. Se é verdade que este modelo de relação foi considerado normal – ou seja, adequado à norma, inclusive jurídica – por muitas gerações, em que um sem-número de casamentos foi celebrado exatamente nesses termos, é importante refletirmos o que essa “normalidade” reproduz das relações de poder.
As leis penal e civil refletem uma mentalidade que ainda persiste no sentido de que adolescentes não podem ter vida sexual salvo se dentro do casamento, negando-se sua autonomia para exercer seus direitos individuais e personalíssimos à sexualidade de forma segura, o que envolve políticas educacionais e de saúde para que isso se dê em relacionamentos e experiências saudáveis e igualitárias.
Mais do que a transformação da lei, é imperioso repensar as normas sociais que ao mesmo tempo infantilizam e retiram a autonomia de adolescentes enquanto os expõem a uma erotização precoce e conduzida a partir do olhar adulto.
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